O que o assassino Dexter - um monstro muito legal - tem a ver com seu bloqueio criativo?
Por Carol Assunção*, Jornalista, especialista em conteúdo audiovisual, Doutora em Linguística do Texto e do Discurso
Se você trabalha com qualquer tipo de processo criativo, sabe que existem os momentos de mente vazia, a sensação de pés capturados pela areia movediça. O eco do deadline, os ponteiros do relógio a girar, o pó a se esvair pela ampulheta - como você, imóvel, enquanto se afunda na inação cerebral. Pelo menos, é assim que você se sente.
Não paramos de pensar, não estamos com bloqueio. Pode ser desgaste, esgotamento, estresse. Precisamos da constância do esforço alternado ao descanso, da densidade combinada com a leveza, do exercício pesado seguido de relaxamento. Nem sempre a sobrecarga de trabalho permite esse equilíbrio.
Mas quando bater o desespero, sugiro um exercício que pode ajudar a mente a pegar no tranco: o uso das figuras de retórica. Como explica o linguista José Luiz Fiorin (2014), mais que instrumentos de estilo, elas possuem efeito argumentativo. Ajudam a construir o argumento que, por sua vez, faz “brilhar uma ideia”. Também conhecidas como figuras de linguagem, são como ferramentas para moldar o sentido, por repetição, acumulação, diminuição, transposição ou troca entre os significados.
"A figuratividade é a condição da existência mesma do discurso". (FIORIN, 2014, p.20)
São tantas possibilidades que o professor apresenta mais de 100 figuras no livro, com ênfase nas principais: metáfora e metonímia, com destaque para alguns desdobramentos, entre outras dezenas delas. Exemplos são a ironia (afirmar algo com o objetivo de dizer o seu contrário enfaticamente); a hipérbole (construir uma imagem de exagero), a personificação ou prosopopeia (humanizar elementos não-humanos, por ações, falas ou adjetivações), o eufemismo (expressar uma ideia pejorativa ou agressiva de forma mais leve, para atenuar o discurso), a anáfora (repetição de termos) etc.
Como fazer?
1 - Defina o principal objetivo do conteúdo que você vai criar, do ponto de vista do sentido: que tipo de reação cognitiva você pretende provocar: estranhamento, identificação, riso, incômodo, receio, reflexão, concordância?
2 - Faça uma pesquisa entre as figuras de retórica e, por definição, verifique aquela(s) que mais se aproxima(m) do seu objetivo. O livro do professor Fiorin é A fonte para essa busca, com exemplos literários de grande eficácia.
3 - Construa rascunhos ou esboços de cada figura que selecionou. Esse processo deve te ajudar a ter mais clareza e encontrar o caminho.
As três etapas podem ser aproveitadas para produção de conteúdo em texto, imagem, audiovisual e multimodal. Quer um exemplo? Dá uma olhada na vinheta de abertura da série Dexter (2006-2013), de Scott Buck e James Manos Jr., transmitida pelo Showtime:
Dexter é um serial killer adotado por um policial que, ao perceber características de psicopatia no filho, conduz a vida dele para que se torne um funcionário da polícia. O protagonista é perito criminal, e canaliza o instinto de matar para liquidar homicidas. Assim, suas vítimas são pessoas que cometeram crimes violentos. O conteúdo integral do vídeo, que mostra a rotina matinal de Dexter, pode ser compreendido como uma metáfora de quão ordinários são os assassinatos que ele realiza.
As referências visuais fazem analogias a formas de assassinato: matar o mosquito com uma pancada; fazer a barba e cortar a garganta, fatiar um pedaço de carne sob a embalagem plástica, fritar e mastigar com vontade, cortar um ovo frito, torrar o café, dividir uma toranja ao meio e esmagar, usar fio dental, lembrar sufocamento ao vestir a camisa. Também identificamos a aplicação da personificação/prosopopeia, pois o mosquito, o pescoço, o bacon, o ovo, o café, o dedo, remetem às vítimas assassinadas.
O eufemismo pode ser reconhecido no primeiro letreiro com o nome “Dexter”: é feito do sangue que escorre discretamente pela tela, sem que a palavra “assassino” precise ser dita. No final, a grafia é muito maior e as letras estão envoltas num mar de sangue, com bolhas vermelhas que se movimentam no ar sob um céu tormentoso e escuro. Aqui, as letras dos nomes também são a personificação de seu dono.
Os efeitos sonoros em alto tom e os planos de detalhe, com enquadramentos muito fechados, configuram hipérboles audiovisuais. Normalmente, não prestamos atenção aos sons e imagens de nossas ações cotidianas. Mas nesse vídeo, trata-se do contrário.
Uma das conhecidas falas de Dexter é “Eu sou um monstro muito legal”. A mesma ironia, aqui textual e misturada com o oximoro (combinação entre ideias paradoxais - monstro legal), pode ser percebida nos planos finais da vinheta: num primeiro momento, o personagem quebra a quarta parede e olha para a câmera com uma expressão perversa, em primeiríssimo plano. Mas, em seguida, sai do apartamento e cumprimenta alguém que está fora do campo da cena, com um jeito de pessoa comum, acima de qualquer suspeita.
Observação: o sobrenome de Dexter é Morgan. Morgue, em inglês, é necrotério. Mera coincidência? Alguma figura de retórica por aí?
E então, bora tentar? Bom trabalho!
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