Quando a vilania se torna uma cor
Por Cláudia Busato Filósofa, Psicóloga e Jornalista, Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP
Este texto foi escrito após convite da professora Carol Assunção, do podcast Trem da Maldade - conversa sobre vilões de filmes e séries com sotaque mineiro, uai!, para falar sobre representações do figurino do personagem Darth Vader, que você pode ouvir aqui:
O que há em comum entre a sombria capa negra de Darth Vader e as capas de Batman nos quadrinhos, as dos nossos juízes integrantes da suprema corte do País e as vestes monocromáticas dos cavaleiros medievais?
A resposta talvez seja a “força” - ou, em sentido lato, o poder - associada a cada um desses sistemas simbólicos. Tomemos como exemplo o staff de juízes da mais alta corte do judiciário do Estado brasileiro. Em discussões no plenário, o grupo se organiza em círculo face a um objeto de discussão. Tonalizados pelo preto das vestes, tornam-se obedientes a uma pontuação de eventos comunicacionais, como ocorria com os soldados da reforma hoplita grega arcaica nas cerimônias da partilha do Butim. Uniformizados, eles juravam ora e solenemente depositar no centro os espólios obtidos nas guerras, estabelecendo-se ali o valor da reciprocidade (1). Os pesos e medidas iguais para todos seriam um dos pilares da justiça.
Mas a tonalidade afetiva de Darth Vader talvez seja o negativo, em sentido fotográfico, dessa força. A propósito do ocaso interno que o acometeu, tédio, eclipse e melancolia são termos próximos que podem dar pistas sobre o personagem em observação.
Todos conhecem o percurso do ex-escravo Jedi Anakin até a transmutação final em seu próprio duplo macabro, filiado a uma dinastia temida e mortal, os Sith. O lord se tornaria um signo ou insígnia de si mesmo. Por destino ou lógica de seu DNA, o filho Luke não escapou ao tormentoso estado interno do pai. De geração em geração as trevas triunfaram. Histriônico por fora - pois tem a força e a exerce impunemente – Vader possui uma fisionomia híbrida: um corpo-máquina, um rosto-máscara.
O vestuário de Darth Vader faz pensar na atribuição de significados por meio da paleta de cores. Entre os Jedi a justiça, o bem comum, o controle das emoções estão representados num figurino de cores sóbrias como o branco (sacrifício), o cinza (entre o puer e a vilania) e o marrom (humildade). Usam calça, camisa, botas, cinto e o sabre de luz. A visualidade cool das ordens guerreiras, que recebem treinamento estóico para enfrentar a “força”, reflete o inóspito momento intergaláctico.
Por se tratar de um cenário ao mesmo tempo tecnológico e primitivo emprega-se, aqui, o conceito de “roupaisagem", proposto por mim em tese defendida no ano de 2008, na PUC-SP. (2) Há uma contiguidade entre o vestuário dessas duas ordens guerreiras e habitantes interestelares do futuro e os objetos do entorno (cenário), onde reverberam o sombrio e acinzentado.
A imagem de Vader assusta. Impõe-se pelas vestes. Capuz, capa ou manto preto e o sabre de luz. No Dicionário da Moda a capa é o “termo genérico para uma peça externa solta, com ou sem mangas, que cobre o corpo desde os ombros até os quadris, os joelhos ou os tornozelos” (CALLAN, 2007, p. 68). Recobre o corpo e anula as formas que tornam o corpo orgânico, maleável e acolhedor. A vocação escultural do corpo é abandonada pelo movimento performático do manto. Assim como é nas aparições de Vader. Sua presença vertical e tétrica aterroriza. Atrai. Trai. Submete.
Após romper com os Jedi, Vader porta um capacete ou elmo que lembra as armaduras “preto-mate” dos cavaleiros medievais. Na Idade Média, o preto e o branco eram “cores autênticas” (PASTOREAU, 2014, p. 6). Enquanto no Renascimento, eram não-cores. Foi somente no século XX que o preto readquiriu a função de cor. Cor rebelde, transgressora, moderna, dominadora e séria (Ibid. p. 250). Na extensa cadeia de significantes dessa cor tão polêmica habitam o castanho, o azul, o violeta, o acinzentado, constelando um sistema de signos com as suas oposições.
O léxico romano traz ater e niger para o preto. E albus e candidus para branco. Ater é o preto mate, opaco e niger o preto luminoso, brilhante (Conf. PASTOREAU, 2014).
O preto herda diversas conotações nos sistemas culturais e épocas em que vigora. Associam a cor à morte e ao luto; ora aos bestiários incidindo sobre o corvo preto tamanha carga simbólica, ora “lado negro da força” de Vader, os pecados capitais na Igreja, a Satanás (o adversáio) e por aí vai. Entre tantos simbolismos vale registrar um: se nix é a deusa da noite, noxius significa o que prejudica. Os traços psicopáticos de Vader não guardariam com noxius uma semelhança?
Pois Vader, eclipsou. Tornou-se opacidade ou falta de luz. O mestre da força expôs ao mundo intergaláctico as próprias feridas sem dizê-las. Mancomunou-se com os defeitos da alma. Assumiu uma identidade capa-caverna? Pode-se dizer que sim. A capa ou manto escuro iconicizou o eclipsamento interior de Vader. Esse inverno duraria muitas eras – ou episódios – para se abrir ao destino do anti-herói um novo e transfigurador estágio.
Peter Sloterdjik reflete sobre esse estado interno denominado melancolia. Para compreendê-lo traz à tona a noção de perda do nobjeto: “trata-se de entidades dadas de maneira esfericamente envolvente que, ao modo de presença não confrontativa, planam como seres originários de proximidade [o parceiro sensível e invisível], no sentido literal do termo, diante de um si que não lhes faz face, precisamente o pré-sujeito fetal” (SLOTERDIJK, 2016, p. 270).
Numa espécie de abandono primordial, o melancólico experimentaria uma situação existencial antitética à máxima religiosa “Deus existe”, respondendo a ela, subversivamente: “mas ele não está em condições de me animar” (SLOTERDJIK, 2016, p. 417). Aliás, “o empobrecimento depressivo é a exata reprodução do não-ter-mais-a-dizer após a retirada do mais importante complemento; é exatamente por isso que, no mundo antigo, a melancolia real era sobretudo a doença dos banidos e desenraizados que, após as guerras e as epidemias haviam perdido suas famílias e seus contextos rituais” (Ibid.).
Notas
(1) (Conf. BUSATO, C. M. Mito e Logos: sobre a origem antropológica da comunicação. In: Revista Communicare. Faculdade Cásper Líbero. Vol. 5 - no 1 - 1o semestre 2005 - ISSN 1676-3475)
(2) In: BUSATO, C. M. O rosto e a roupa:uma leitura dos outdoors de moda em ambientes urbanos. (http://lattes.cnpq.br/6028025460315035). O resumo da tese no no E-bookCISC 20 Anos.
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