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Um jogo jogado - Parte I

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A pandemia aflorou estratégias de sobrevivência, como o jogo, uma das formas da cultura


Por Cláudia Busato Filósofa, Psicóloga e Jornalista, Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP


O mundo ruidoso do turismo de massa, dos shoppings centers, da pirotecnia em réveillons famosos, dos megashows, da euforia das bolsas de valores e das academias fitness deu lugar a uma calmaria enlutada pelas mortes que contam a casa dos milhares em frágeis e móveis estatísticas. A queda é grande.


Coronavírus, o novo estranho habitante do planeta, trouxe com ele rápidas mudanças. Ruas silenciosas e isolamento social. Tem sido dito que esse vírus está escrevendo a sua história natural. Ele joga. Mas, que jogo é esse? Além de distópico, é paroxístico seu reino. Sua origem. Quanto a nós, seres de civilização e sobreviventes, estamos todos desolados e no escuro, para usar metáforas e lítotes que ora convém.



O jogo é a própria imagem da vida, diz Roger Caillois, autor do marcante estudo Os Jogos e os Homens: a máscara e a vertigem. Para o estudioso, são quatro as posturas básicas dos jogos: competição (Agón), simulação/espetáculo (Mimicry), sorte/azar (Alea) e vertigem/êxtase (Ilinx).


“O gosto pela competição, a busca da sorte, o prazer da simulação e a atração pelo vertiginoso surgem indubitavelmente como os princípios motores dos jogos, mas a sua ação embrenha-se completamente na vida das sociedades” (CAILLOIS, 1990, p. 105).




A natureza e a oportunidade social dos jogos os faz livres e diversos entre si. Definem-se pela presença (ou não) de regras, pela ação ou o abandono da vontade (consciência), pelos jogadores em questão, o local da partida, a existência de espectadores, a atmosfera do jogo, por seu aspecto plástico ou estético, o ser jogado individual ou coletivamente, pelo eventual prêmio ou recompensa, pelo gozo, o fascínio de ganhar ou perder.


Há jogos infantis como a peteca, a amarelinha, o jogo do engenheiro, a pipa, brincar de boneca. E há jogos adultos. Agón, por exemplo, é a modalidade de jogos em que o mérito pessoal ocupa o centro e dá sentido ao próprio jogo. O reconhecimento pela ação exitosa é muitas vezes o maior prêmio. Define-se uma partida pelo ímpeto empreendedor e a pertinácia dos jogadores. Essa forma de esforço, disciplina e vontade de vencer não adia, não tergiversa, não blefa. Os fenômenos culturais em que Agón está presente são, respectivamente: o duelo, os torneios, as partidas (futebol, vôlei, basquete, tênis, etc), os concursos, a competitividade entre os executivos das grandes corporações, a estrutura militar que desde a reforma hoplita, na Grécia Arcaica, ordena o caos natural e social. O “funcionário da semana”, cujo retrato um tanto histérico exibido nos estabelecimentos como manchete de jornal, confirma na forma egocêntrica do evento o lugar do reconhecimento pessoal na cultura e modelo social do lucro, até há pouco vigentes.


Para quem não participa, uma luta ou uma partida de futebol (Agón) torna-se um espetáculo (Mimicry). Os espectadores, imitadores dos movimentos, tomados pelo contágio e a emoção do jogo, a performance dos esgrimistas, patinadores, esportistas, enxadristas. Já representar e simular nas artes, no teatro, no carnaval, nos bailes de máscaras são práticas sociais de Mimicry.


Os jogos de azar como o par ou ímpar, a roleta, os jogos de carta, o jogo de dados pertencem ao domínio de Alea. E a vertigem ou o êxtase (Ilinx), que sugere a ideia de um turbilhão das águas, cujo efeito é o de desestabilizar por um instante a percepção, inflige à consciência um prazeroso e voluptuoso pânico. Esse estonteamento, transe ou espasmo promete desvanecer a realidade. Prazer e perigo são aqui contíguos. Exemplos dessa modalidade são: o peão, o carrossel, a roda gigante, o toboggan, as acrobacias, a valsa, o rock’n roll, as raves, para citar apenas alguns.



Ilinx (vertigem) que é fúria e uma experiência procurada como um fim em si mesma, é incompatível com as regras, o esforço e o cálculo de Agón (competição). Alea e Mimicry também se repelem. Caillois (1990) explica que um apostador não precisa e não quer simular (Mimicry) que não é o autor do lance de sortilégio, pois seu regozijo está no total abandono ao arbítrio da sorte, anulado que é por esta. Ele só está no jogo por render-se a ele. Ao passo que, em Mimicry (simulação, espetáculo), o indivíduo aceita temporariamente uma ilusão. Por exemplo: a menina, quando brinca com bonecas, anima-as; no teatro, a mímica e o disfarce dão força e realismo ao drama encenado. Assim, “o prazer é o de ser um outro ou de se fazer passar por outro” (CAILLOIS, 1990. p. 41). Mimicry se nutre dessa fantasia transbordante e não reconhece, como ocorre com Ilinx, código algum (CAILLOIS, 1990).

Nas combinações contingentes, os jogos têm alguns aspectos comuns e outros não. Nos jogos de azar (Alea) o jogador experimenta o atordoamento de Ilinx. Ao ganhar a aposta ou perder o jogador, prova a mesma euforia. Mas não aceita, em hipótese alguma, que as regras do jogo sejam violadas. Ilinx, ao contrário, despreza qualquer regra.


Quanto às combinações fundamentais, observa-se uma simetria entre Agón (luta, competição) e Alea (sorte/azar). Ambas exigem igualdade de oportunidades do início ao fim da jogada. Mas, com relação à atitude do jogador, surge uma diferença importante: enquanto em Agón o jogador conta apenas consigo mesmo, sob a égide de Alea conta com todos, exceto consigo mesmo, pois apenas aguarda, suspenso pelo acaso.


Em competições atléticas ou intelectuais a atitude do jogador é oposta. Emprega todos os recursos de que dispõe para aplacar o adversário, atingir o alvo pretendido e vencer. Daí os extremos – xadrez x dados, futebol x loteria. Mas há nuances nessas combinações.


Na próxima edição você vai saber que estados do jogar têm a ver com a atual pandemia. Na sintaxe dos jogos, observam-se combinações: proibitivas, contingentes e fundamentais. Se ainda não se inscreveu na nossa Newsletter, faça isso agora e não perca a continuação desse jogo…












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