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Montar documentários

O material bruto de um real imaginado


Por Dani Gonçalves, Documentarista, Jornalista, Mestre em Cinéma anthropologique et documentaire

A realidade sempre supera a imagem, seja esta registrada na memória ou em um arquivo de vídeo. Quando eu entrei pela primeira vez em uma ilha de edição, não era exatamente isso o que eu pensava. Eu me sentia, e ainda me sinto, tão segura e acolhida naquele quarto escuro onde os únicos sons e imagens que me chegavam do mundo eram aqueles contidos em um HD. Eu era assistente de montagem de uma série documental, em uma produtora brasiliense, e, naquele momento, o material bruto era o que havia de mais precioso para mim.


Alguns anos depois, enquanto montava uma série documental sobre teatro em São Paulo, eu decidi assistir a uma das peças ao vivo. Fiquei encantada com as cores dos figurinos, as texturas das peles, os timbres das vozes, os olhares cheios de vida, tão diferentes daqueles com que estava familiarizada por força das semanas de montagem. Como quando encontramos alguém querido que não vemos há muito tempo, e este nos traz um brilho do desconhecido perante a nossa coleção de lembranças. Também penso que talvez, em contato real com os “personagens” da série, eu estivesse sob o efeito paralisante de contemplá-los sem ter que tomar nenhuma decisão sobre como eles deveriam ser apresentados.

Enfim, acho que a montagem é muito afetada pelo fato de conhecermos ou não as pessoas, os lugares, as atividades retratadas. Mas ela também influencia a forma como percebemos o mundo depois que passamos por ela. Toda vez que eu começo um projeto novo, principalmente aqueles em que não participei da filmagem, gosto de assistir à totalidade do material. Enquanto isso, faço anotações que me permitem, logo em seguida, esboçar uma estratégia de abordagem. Trata-se não somente de uma lista de sequências, mas um mapeamento dos assuntos abordados e das possíveis representações que carregam em si. Mas ao ver o bruto pela primeira vez, o mais importante, para mim, é anotar primeiras impressões, principalmente no que diz respeito ao que me arrepia a pele, me estremece o corpo em uma boa risada, me faz lembrar ou esquecer o cansaço de estar sentada tantas horas diante de uma tela.


Com esse primeiro esboço de escaleta em mãos, gosto de começar a montar os pedaços do filme, sem me preocupar com o conjunto. Pode parecer meio contraditório dito assim, mas essas sequências autônomas me permitem estar mais próxima do que estou buscando junto à diretora ou ao diretor. Nesse momento, eu não tenho nenhuma certeza sobre a ordem das sequências, mas eu tendo a identificar rapidamente qual delas abriria o filme em questão. Sim, diferentemente de Jean Rouch, que defendia a importância de se saber de antemão como um filme acaba, eu tenho a necessidade de saber como começa. Em uma dessas inúmeras lives de quarentena, ouvi o montador Eduardo Escorel dizer que gosta de montar primeiramente o início e o fim dos filmes. Cada um com suas manias.

Aliás, Jean Rouch, que foi engenheiro de formação, pega emprestada uma regra da arquitetura do seu tempo ao afirmar que não se pode fazer a montagem de um filme de uma só vez. A montadora ou o montador experimenta, pouco a pouco: suprime uma imagem, acrescenta dois frames antes do corte, avança lentamente rumo à forma final, de 10, 52 ou 120 minutos, que conta uma história que se passa em alguns dias, meses ou anos. Ou seja, somente por meio dessas “aproximações sucessivas” é possível transformar o que foi filmado em qualquer coisa que se possa dar a ver aos outros, algo que esperamos que possam compreender intelectual e emocionalmente.


No livro Filmar o que não se vê, o cineasta chileno Patricio Guzmán dedica um capítulo inteiro à montagem. Para ele, “é um trabalho de ourives, um tecido de imagens e sons que vai crescendo com lentidão ao ritmo de três, quatro ou cinco minutos por dia”. Guzmán chama atenção para que o montador se coloque ao lado do filme, isto é, encontre a narrativa. E isto só é possível com respeito e profundo conhecimento do material bruto. Grandes montadores já declararam que o filme, principalmente o documentário, nasce na montagem. Não acho que seja arrogância ou que tal afirmação implique na desvalorização das outras funções envolvidas na realização de um filme. É na montagem audiovisual que todos os elementos se combinam para construir sentido.


O jogo entre som e imagem, o ordenamento de planos e sequências, a variação de ritmo, nada disso é aleatório. Cabe à montadora, ou ao montador, portanto, se deixar atravessar afetivamente pelo material, e ao mesmo tempo, encará-lo em busca da narrativa ali latente.


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