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Um jogo jogado - Parte II

Estados do jogar e a pandemia do coronavírus


Por Cláudia Busato Filósofa, Psicóloga e Jornalista, Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP

Na parte I deste texto sobre a teoria dos jogos, apresentei os conceitos de Roger Caillois. Mas como se aplicam ao momento em que vivemos? Você vai saber agora quais estados do jogar têm a ver com a pandemia do novo coronavírus. Na sintaxe dos jogos, observam-se combinações: proibitivas, contingentes e fundamentais. Vejamos algumas como pano de fundo para o sentido do jogar na realidade desta pandemia.


O presente cenário estabelece uma partida entre forças da natureza e da cultura. O vírus joga o seu jogo; a civilização, outro. Assim, Alea (aposta, loteria, azar) parece ser o jogo da COVID-19, enquanto o jogo da civilização é Agón. Sob ataque, órgãos/corpos são sanitizados e submetidos a um verdadeiro arsenal da Ciência médica e ações do poder público, tais como: isolamento social, uso obrigatório de máscaras e luvas de proteção, distanciamento, toque de recolher durante a noite e até mesmo o lockdown em municípios e Estados da Federação.

Vida nua, diria Giogio Agamben, filósofo italiano contemporâneo de ampliada lucidez. O corpo nu ou vida nua – o corpo não institucionalizado e disponível - é o corpo dos enfermos e dos mortos diante de nós. É a própria exposição da vida. Dura luta. Colapso nos sistemas de saúde mundiais, falta de leitos de UTI, de respiradores e aparatos médicos de segurança.


Sob o signo de Alea, a COVID-19 é uma loteria. Infectologistas de renome dizem que o Corona tem uma chave que se encaixa - atávica - nas “fechaduras” que encontra – indivíduos com comorbidades, diabéticos, obesos, idosos. Além disso, errático, o novo vírus sofre mutações, revela-se um camaleão. E a doença, complexa e caprichosa. Alea desafia as competências da Ciência, da ordem e do método, e se atém avassaladora ao próprio sistema. Talvez, fica como hipótese, essa doença que tem a propriedade de arruinar sistemicamente um organismo vivo ao atacar seus órgãos seja, segundo a lógica dos jogos, também, Ilinx (vertigem, fúria).


Entretanto, estratégias criativas concorrem nesse interregno.


Agón (luta, competição) e Mimicry (criatividade, arte, máscara, espetáculo) podem criar uma outra metafísica, lúdica e imaginante, em contraponto ao paroxismo vivido pelo vírus que se alastra em todo o Globo. Vem da semiótica nosso próximo conceito, o musement.


O sugestivo termo foi criado pelo norte-americano e fundador da semiótica moderna, Charles Sanders Peirce, para designar o jogo livre da imaginação. Peirce (apud BARRENA, 2003) traduz musement como um deixar livre a consciência, que vai de uma coisa a outra. É como se, de olhos abertos, a mente estivesse desperta a tudo o que transcorre dentro dela, como ocorreria com um bote solto num lago. O conceito leva a pensar que o sensual (afeto, sentimento, afecções) deixa vestígios nos mais abstratos símbolos. É um deslizar de pensamentos que roça no mundo sensível e cria. A liberdade é o grau zero, aqui, da razoabilidade. Afinal, é próprio do repertório cognitivo, ético e estético humano produzir formas, novidade, beleza.


O confinamento social é o laboratório por excelência dessas soluções resilientes. Iniciativas criativas de homens e mulheres, crianças, idosos, trabalhadores, artistas, escolas, universidades se fizeram ver nos últimos dias: jograis nas janelas, sinfonias através de lives de músicos que tocam juntos, mas sem reunir os instrumentos, mensagens com desenhos de crianças a respeito do coronavírus, máscaras gratuitas acompanhadas de poeminhas pendurados em árvores pelo interior brasileiro, varal de máscaras, costureiras aferradas para ajudar rapidamente os que não têm as vitais máscaras, economia criativa e solidária, e até uma fotógrafa que por ocasião do dia das mães fez homenagem coletiva ao postar fotos de mães nas portas de suas casas.


São muitos exemplos dessas formas de sobreviver e jogar, mas vale aqui a lembrança de um gesto em particular em pleno ar: o comandante do voo de uma companhia aérea, que levava profissionais da saúde para Manaus em reforço às ações contra a mortes pela COVID-19 na capital amazônica, tomou o rádio da cabine no meio da viagem para fazer uma comunicação edificante aos profissionais ali presentes. Com uma salva de palmas, toda a tripulação rendeu-se à honrosa homenagem. Elementos da filosofia do jogo, como a solidariedade e a disciplina, são doses profiláticas e boas armas para enfrentarmos essa pandemia. Dar-lhes sentido só depende de nossa vontade.


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