Seminário do Grupo RETORAR da UFMG
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A hora do lobo

A hora do lobo (Vargtimmen, Ingmar Bergman, 1968) apresenta a história do desaparecimento de Johan Borg (Max von Sydow) – artista que, junto à companheira Alma (Liv Ullmann), começa a ser abordado por figuras estranhas na ilha onde mora. O eixo principal do filme, no qual se sustenta a sua complexidade, parece ser relacionado a tais figuras, ou talvez, mais especificamente, ao liame estabelecido entre elas e os protagonistas no decorrer da trama. 

A chegada do casal à ilha, que abre a narrativa, contrasta com todos os outros momentos do filme. Johan e Alma estão bem: alegres, descontraídos e apaixonados, deleitam-se com a vida conjugal em cenas como aquela em que Alma posa para o companheiro desenhá-la.

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Essa leveza, entretanto, dura pouco. Nas cenas seguintes, a atmosfera é pesada, de mistério e desconforto, e predomina assim nos oitenta minutos restantes da história. Preocupação e inquietação ficam evidentes nas feições de Borg, que mostra à companheira as figuras que o assombram presentes em sua arte, não mais inspirada pelo amor. 

 

O terror de seus pesadelos o fazem querer resistir acordado até os primeiros raios de sol de cada manhã:

  • uma senhora de chapéu que, ao tirar o chapéu, tira também o próprio rosto;

  • o “homem-pássaro”; os “homens-aranhas”;

  • o professor; as mulheres gargalhando etc.

 

Ao longo do filme, o público pode suspeitar que as misteriosas pessoas que abordam o casal na ilha sejam, de alguma forma, as mesmas que aterrorizam a alma e a produção do protagonista ao longo da transformação de seu estado de espírito. Tal relação é prenunciada quando Alma questiona Johan se ele acredita que, assim como os que passam a vida juntos se tornam cada vez mais parecidos em pensamento e expressão, os dois um dia viriam a ter rostos cada vez mais semelhantes e a pensar os mesmos pensamentos. Naquilo que parece ser uma ironia fina, o filme se recusa a responder a pergunta de Alma: o protagonista dorme durante a conversa. Possivelmente encontra em pesadelo as figuras que o assombram e os passados que descobriremos ainda atormentá-lo, em vez de sonhar com a felicidade do casal. Compreende-se, assim, a relação que se estabelecerá entre a esposa e os “monstros” aparentemente relacionados ao companheiro.

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A primeira aparição surge para Alma. Uma senhora de chapéu diz ter 273 anos de idade e revela a existência de um diário de Johan, estimulando a protagonista a lê-lo. Ao fazê-lo, Alma descobre que ele havia sido abordado por outras três pessoas na ilha:

  • um certo barão von Merkens, que convida os protagonistas a um jantar em seu castelo;

  • uma antiga amante de Borg, Verônica Vogler, que transa com ele após ler carta ameaçadora com os dizeres: “você não nos vê, mas nós vemos você. As coisas mais horríveis podem acontecer. Sonhos podem ser desvelados. O fim está próximo [...]";

  • e uma figura acadêmica (um professor?), que o protagonista estapeia.

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As quatro aparições suscitam dúvidas na audiência sobre a realidade e natureza dessas figuras estranhas e de seus encontros com os protagonistas. Uma idosa de 273 anos? Um barão que é dono da ilha e admira o trabalho de Borg sem nunca ter entrado em contato com ele diretamente (mesmo com o casal morando há tantos anos na ilha)? Uma amante de tempos distantes ressurgindo repentinamente com carta misteriosa? Um professor que aparece aleatoriamente e é estapeado sem reagir? O filme começa, então, a desenhar o desconcertante clima onírico de incerteza, inefabilidade e instabilidade que permanece na narrativa até o fim.

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Bergman parece fazer com que não apenas Johan, mas também o próprio espectador tenha que lidar com a paranoia e confusão da insônia e dos pesadelos incompreendidos. O público pode, desde o início, tanto desconfiar da realidade imediata das cenas, como precisar significar e ressignificar constantemente tudo o que é apresentado. A lógica pouco compreensível dos sonhos que preocupam Johan parece transbordar para a realidade com Alma e desafiar protagonistas e audiência a desvendar os acontecimentos e, sobretudo, os sentidos implícitos. 

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Quando o casal vai ao castelo do barão von Merkens, uma cacofonia se instaura na mesa de jantar e revela que Verônica Vogler teria relação com a família do anfitrião – o que provoca constrangimento tanto para Johan, quanto para Alma, mas diverte todos os outros presentes. A cena transita para um horripilante “show de marionetes” na biblioteca do castelo, um dos raros momentos em que o barulhento grupo faz total silêncio para apreciar a miniatura de uma figura humana sendo controlada pelo arquivista da família.

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O arquivista dos von Merkens controla o show de marionetes,

colocando-se acima das marionetes (e dos “convidados de honra").

Após a apresentação, o arquivista pede a opinião artística de Johan, que, em vez de responder, diz que não se classifica propriamente como artista mas acabaria por sê-lo; não por pretensões megalomaníacas de arte, mas por uma certa compulsão ou obsessão que não o deixa ser diferente. Apesar de aplaudido, Johan acaba ferido pela mãe do barão e recebido com mais barulho e gargalhadas pelos moradores do castelo – que, portanto, além de irritá-lo param de valorizar sua arte e voltam a tomá-lo rapidamente como apenas objeto de diversão. Antes de o casal de protagonistas partir, a mulher do barão leva os dois para contemplar uma pintura que Johan havia feito de Verônica Vogler durante o seu período de paixão intensa com a jovem, em claro exercício sádico. Bergman nunca mostra as imagens produzidas por Johan, o que suscita a imaginação (e devaneio?) sobre como seriam essas representações com base apenas nas descrições e reações dos personagens.

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Alma reage à apaixonada pintura de Veronica feita pelo companheiro

em passado que ele se recusa a desvelar (e a confrontar?).

Na volta para casa, Alma confessa ter lido o diário de Johan e grita por sentir que aqueles moradores estranhos da ilha tentam separá-la do amado. Ela afirma que não desistirá dele e com ele permanecerá, aconteça o que acontecer, mas o processo de separação gradativa entre os personagens já é perceptível. Diferentemente do começo do filme, agora se distanciam em tela, vivem em atrito e têm dificuldades mútuas de comunicação. Não acidentalmente, Johan se afasta de Alma ao som do choro da esposa após expor a situação na qual se encontram. É quando o filme finalmente apresenta o título sobre fundo preto: VARGTIMMEN (“A hora do lobo”).

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Johan e Alma voltam pra casa já distanciados.

A expressão é imediatamente explicada na cena seguinte – mais um momento sombrio no meio da madrugada, tomado pela escuridão. “A hora do lobo” é o período da noite em que ocorre a maior parte das mortes e nascimentos. É também quando “os pesadelos vêm até nós” se estivermos dormindo; e o medo nos invade, caso estejamos despertos. Nesse mesmo horário, Johan compartilha memórias traumáticas do passado: da infância, sobre a punição que sofreu dos seus pais; e sobre quando teria matado uma criança após um desentendimento no tempo em que já residia na ilha com Alma.

 

O choque dessas narrativas é interrompido por um novo convite ao castelo feito curiosamente pela figura do professor no limite da “hora do lobo”, com ênfase na presença de uma nova convidada: Veronica Vogler. Alma pede que Johan conte sobre a relação com a jovem e, com a recusa do protagonista, decide ler as palavras dele no diário sobre o assunto. Ao descobrir que o amor dos dois era tão intenso que pareciam constituir “uma só carne”, como Alma havia proposto acontecer com casais duradouros, embora a concretização da obsessão passional entre Johan e Veronica tenha sido breve. 

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Alma o censura por continuar a perseguir uma paixão pretérita e por insistir em lutar contra os misteriosos “fantasmas” da ilha em vez de partir com ela – mas reitera sua decisão de acompanhá-lo, aconteça o que acontecer. Johan, entretanto, não lhe dá escolha e, depois de atirar nela com arma cedida pelo professor, parte sozinho rumo ao castelo em busca da mulher que era objeto de uma paixão e compulsão ainda não superadas. Antes de encontrar Veronica, ele conversa com as estranhas criaturas e vive experiências surreais:

  • com o barão, que literalmente sobe pelas paredes em um momento de ciúme cuja imagem faz lembrar o homens-aranha; 

  • com a senhora de chapéu, que literalmente tira o próprio rosto ao tirar o chapéu; 

  • e com o arquivista do show de marionetes, que abre asas como o "homem-pássaro" antes de levar Johan ao encontro de Verônica.

 

Ao reencontrar a amante e começar a beijá-la, Johan é interrompido pelos moradores do castelo, que fazem plateia para o encontro, gargalham e se divertem novamente às custas do protagonista ao vê-lo ceder mais uma vez à antiga paixão. Ao  fugir para floresta, o artista é atacado pelos moradores ao som dos gritos desesperados de Alma, e some, por fim, sem deixar rastro.

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Os moradores do castelo começam a mostrar as verdadeiras identidades

A protagonista termina o filme se questionando se não fora capaz de salvar Johan por não ser suficientemente parecida com ele e não o ter seguido em todos os movimentos; ou se por ter sido parecida demais com ele e deixado os fantasmas aparecerem também para ela e afetá-la. 

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O que representaria “a hora do lobo” afinal?

  • A história de um artista que, consumido pelos demônios do passado, não suporta a loucura e a compulsão e desaparece em tentativa de fugir daquilo que não consegue confrontar – enlouquecendo a própria parceira parcialmente no processo?

  • A narrativa de demônios reais, chamados no filme de canibais, que se aproveitam dos mais sensíveis e tragicamente não são derrotados nem pela dedicação e amor dos entes mais próximos?

  • A reflexão sobre as diferentes consequências entre um amor puro e benevolente e uma obsessão passional – com o primeiro assemelhando os amantes, mas mantendo entre eles uma inevitável distância que se agrava); e, o segundo tornando-os quase “uma mesma carne”, que gera sentimento de incompletude e anseio perpétuo ao serem inevitavelmente separados pelos problemas e turbulências decorrentes da maníaca proximidade e intensidade que os une? 

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Como constata a própria Alma, “há muito a se refletir”. O filme é provavelmente tudo isso e mais um pouco. Se não se pode explicar nem seu conteúdo mais explícito a partir de um eixo principal, pode-se apenas sonhar em tentar explicitar a forte e impactante carga imagética que também o preenche e vivifica. Resta a cada espectador(a) assistir repetidamente, de acordo com a medida da própria obsessão, e permitir-se sobre ele devanear o quanto precisar – não negando os medos e descobertas que podem advir a cada...

...Hora do lobo.

*Por André Bomfim Mynssen Coelho (Doutorando em Filosofia/UFMG)
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