Malpertuis
Malpertuis (The Legend of Doom House, 1971, 110 min.) é a adaptação cinematográfica do livro homônimo de Jean Ray. O filme conta a história de uma casa em ruínas, onde o tirano moribundo Cassavius vive com agregados e deuses esquecidos do Olimpo, que foram aprisionados dentro de invólucros humanos. A trama começa quando o marinheiro Jan, sobrinho de Cassavius, desembarca na cidade de Malpertuis para uma estadia temporária, mas cai num ardiloso plano que o aprisiona na casa horripilante. Impossibilitado de deixar o local, o jovem é obrigado a conviver com os habitantes do casarão que desejam, sobretudo, a morte do anfitrião tirano. Eles estão interessados na herança e vislumbram a possibilidade se livrarem do cárcere.
No entanto, antes de morrer, Cassavius reúne todos em seu quarto para anunciar que todos receberão parte da herança, desde que uma condição necessária seja cumprida: devem permanecer na macabra propriedade até a morte do dono. Jan parece desinteressado em tudo o que vê, até olhar para Euryale – uma misteriosa e bela mulher que o deixa apaixonado. A partir desse momento, seu desejo de deixar a casa desaparece e ele passa a querer permanecer onde está, mesmo que Euryale lhe pareça inalcançável. As referências sutis à mitologia grega só são confirmadas no final da história.
O filme representa utopias e distopias, e conduz ao tema dos sonhos, ou melhor, dos pesadelos. O sonho é explorado de maneira dicotômica, pois nos é apresentado tanto enquanto um desejo do sujeito, como no aspecto onírico – portanto, retrata personagens motivados por por ânsias e desejos. No decorrer do drama, o plano de Cassavius fracassa e alguns personagens são assassinados.
Não é por acaso que o filme foi intitulado em inglês como “A lenda da casa da desgraça”. A palavra doom parece resumir o filme de forma inigualável. Vejamos dois dos principais significados extraídos do Cambridge Dictionary:
-
death, destruction, or any very bad situation that cannot be avoided.
tradução livre: morte, destruição ou qualquer situação muito ruim que não possa ser evitada. -
to make someone or something certain to do or experience something unpleasant, or to make something bad certain to happen.
tradução livre: fazer com que alguém ou algo faça ou experimente algo desagradável ou faça com que algo ruim aconteça.
E é exatamente isso que ocorre com Jan, dado que ele é posto numa situação embaraçosa e difícil de sair ou de acordar. Isso remete ao prólogo do filme que se inicia com um diálogo entre uma criança e um adulto:
– É bonito, diz a criança, mas é um pouco difícil de entender.
E continua o homem,
– Havia muitas coisas que Alice não entendia, mas ela não admitia.
Ao que a criança responde:
– De alguma forma, isso me faz pensar em todos os tipos de coisas, mas não sei exatamente o quê.
E o epílogo igualmente traz em tom filosófico:
“Life, what is it but a dream?”
tradução livre: “A vida, o que é senão um sonho?”
Malpertuis traz essa provocação ou desconforto que busca desestabilizar as bases epistêmicas do espectador e colocá-lo em dúvida acerca da vida, ao mesmo tempo em que de enfatiza o caráter onírico e desejante da existência.
*Por Clinton Santos (Graduando em Filosofia/UFMG)
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Confira o que aconteceu nos outros dias do IV Seminário Docere, delectare et movere: sonhos, ficções e (ir)racionalidades:
15/02 Memórias, presságios e poderes
16/02 Recepção dos clássicos, arqueologia dos sonhos
17/02 Sonhos de grandeza, erotismo e tabus
18/02 Sonhadores de imagens e ficções
19/02 (Ir)racionalidades em diferentes "paisagens"
Resenhas dos filmes exibidos
Malpertuis (Harry Kümel, 1971, 110 min.)
O Manuscrito de Saragoça (Rekopis znaleziony w Saragossie, Wojciech Has, 1965, 3h02min.)
A Hora do Lobo (Vargtimmen, Ingmar Bergman, 1968, 1h29min.)